O homem que quer destruir as pirâmides
Podemos andar muito preocupados com Passos, Sócrates, Costa, o BES e mais uma série de coisas que são deveras preocupantes, mas no geral deixamos que o essencial nos passe ao lado. O essencial está na Rússia, por exemplo, onde Putin, seguindo a velha tradição despótica da região, lamenta os assassínios que ele determina e, sobretudo, no chamado Estado Islâmico onde o fundamentalismo atinge as raias da incredulidade.
Murgan Salem al-Gohary, fixem este nome. É o líder da jiad no Egito e tem uma proposta arrepiante: destruir as pirâmides e a esfinge que as guarda, no vale de Gizé, às portas do Cairo. Não se trata, como se sabe, de nada que tenha a ver com qualquer das religiões existentes. As pirâmides são dos faraós Quéops (a maior) Quéfren, e Miquerinos, sendo que se entende que a cabeça da esfinge será de Quéfren.
Têm mais de 4000 anos, ou seja mais cerca de 2000 anos do que o cristianismo e mais cerca de 2600 do que o islamismo. São anteriores aos primeiros livros que falam do Deus único hebraico, mais velhas que Sidarta, o fundador do budismo. A maior das pirâmides era considerada uma das sete maravilhas do mundo antigo e a única que resiste (as outras foram levadas pelo tempo: os jardins suspensos da Babilónia, a estátua de Zeus em Olimpo, o Templo de Artémis em Éfeso, o colosso de Rodes, o Mausoléu de Halicarnasso e o Farol de Alexandria).
Mas o jiadista olha para este património mundial, cuja antiguidade não tem paralelo, nem com a muralha da China nem com nenhuma construção humana, como mera idolatria. O profeta, diz ele, mandou destruir os ídolos, embora não explique a razão pela qual o profeta, que quando nasceu já as pirâmides tinham 2500 anos, não as destruiu ele mesmo.
Depois de cidades histórias, depois das estátuas gigantes dos Budas, no Afeganistão, destruídas por talibãs, os fundamentalistas mostram bem o que pretendem - destruir todos os testemunhos da humanidade; tudo o que contrarie ou possa significar ter havido, antes deles, outras formas de vida, outras crenças, outros modos de viver a espiritualidade que nada tem a ver com a sanguinolenta, bárbara e desumana forma como eles a vivem.
Uma vida humana vale mais do que uma pirâmide. Concordo que isso é verdade no plano dos princípios. Mas a grande pirâmide e o conjunto monumental da necrópole de Gizé valem bem ser defendidas por toda a humanidade e mobilizar mais pessoas do que o bárbaro ataque ao 'Charlie Hebdo'. Ali está em causa o passado coletivo da humanidade, o esforço humano, as chamadas proporções divinas que ainda hoje se discutem.
Os responsáveis de todas as nações civilizadas têm de travar al-Gohary e os seus seguidores. Já vimos do que eles são capazes, não podemos permitir-lhes a menor margem de manobra. O que o jiadismo agora tem em mira é o legado dos avós dos avós dos nossos avós. Foi ali que Napoleão disse aos seus soldados que 40 séculos os contemplavam. Um tempo em que nem as cidades gregas ou fenícias existiam, muito menos o Império Romano. O próprio Moisés Bíblico, quando nasceu, já existiam aquelas pirâmides há cerca de 500 anos. Tantos quanto os anos que nos separam do início da construção da Torre de Belém. O que o jiadismo pretende é que nada que não sejam eles próprios possa existir ou ter existido. Nesse sentido é, além de fundamentalista, o maior dos totalitarismos que já conhecemos.
Eu sei que num mundo onde todos andam preocupados com os pequenos acontecimentos, isto passa despercebido. Assim, pelo menos, sinto que cumpri o dever de alertar para al-Gohary e o seu plano tenebroso.
Jornal Expresso Sexta, 6 de março de 2015
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