quarta-feira, 12 de abril de 2017

UMA EXPERIÊNCIA DE VIDA...

Nos meus inícios de casada, quando não ter onde cozinhar sem ser numa cozinha dividida por quatro ou cinco mulheres_, tantas quantos os casais que viviam, como eu, em partes de casa, mas  cujos espaços para colocarmos nossos  pequenos fogareiros movidos a petróleo eram largamente reduzidos, visto mais de metade ser ocupado com amplos fogões de forno, a gás, pelas inquilinas que nos arrendavam  as partes de casa_ e quando  o ordenado do meu  marido era à conta para pagar o aluguer dessas partes de  casa e ele tinha de trabalhar como pedreiro, nas suas folgas, para termos com que comer  (eu não podia bordar, pois não me era permitido pelas donas das casas); e quando eu não podia lavar roupa a não ser no dia semanal que me pertencia... respondi a um anúncio para porteira: «Casal sem filhos, marido pedreiro, para algum pequeno serviço no prédio, casa grátis, blá,blá,blá...»
Apareceu-me um maltrapilho,  sapatilhas rotas, apresentou-se como empregado do proprietário do prédio. Deu-me a morada e a hora em que devia ir falar com o proprietário.
Deparei-me com três proprietárias, todas irmãs, sendo duas delas solteironas e a outra, casada com o... "maltrapilho das sapatilhas rotas"!
Mas eu só vira a saber disso quando para lá fui morar. 
Acertámos tudo, mudámos logo para lá, um enorme quarto, uma  boa casa-de-banho, cozinha espaçosa, com despensa. E não pagaríamos nada por ela. Um terraço, mas... com  algumas laranjeiras e capoeiras com galinhas, vindo a sermos informados que pertenciam  aos proprietários, que possuíam uma chave da casa da porteira, para irem regar as árvores  e cuidarem da criação.
Bem, acabavam por ir lá todos, incluindo a empregada doméstica, estender roupa no meu estendal...
Adivinham quem tinha de pagar a água? Claro que sim, não era difícil.
Tinham uma pequena fabriqueta para fazer cera e outros produtos, numa arrecadação contígua à casa da porteira, pois ele tinha uma drogaria. Assim, ia para lá, de noite, com o empregado,  gastar imensa electricidade. Mas, do mal, o menos, nunca provocaram nenhuma explosão, apesar do material inflamável que lá tinam armazenado e que  manuseavam...
Adivinham quem tinha de pagar essa electricidade, pois saía do contador instalado na casa da porteira?
Claro, não é difícil  adivinhar...
Tinha de limpar a escada diariamente,  com horário marcado, que era quando os inquilinos saíam quase todos para os seus empregos, nem antes nem depois. Detergente pago por mim, claro... 
No entanto, como eu era muito prestável, ia cuidar de flores e limpar ligeiramente as casas, aquando das férias dos inquilinos, ia colocar-lhes os caixotes do lixo, que eu lavava, junto das portas, depois do carro de recolha passar, algo a que não estava obrigada, pois todas tinham  empregada doméstica  a tempo inteiro  e não era obrigação da porteira fazer isso. Também nunca recusava vigiar as crianças quando as empregadas saíam para as compras  ou ir-lhes fazer as camas, e fechar as janelas, algum tempo depois de saírem para os empregos, durante as férias das suas empregadas. E todos me ajudavam muito, quer com uns trocaditos pelo Natal, quer com alimentos que traziam da província.
Mais os  120 escudos que ganhava para limpar a escada, pois na minha função, até com "distintivo" (porteira) bem visível, não estava incluída a limpeza, pois isso pertencia aos inquilinos. Mais alguns bordados que me encomendavam,  melhorámos a situação financeira.
Mas era uma escravidão total,  meu marido passou todas as folgas de vários meses a colocar  azulejos nas cozinhas, pois muitos deles estavam a cair, nelas todas,  devido a terem sido mal colocados, pois o prédio era  de construção recente.
Eu nunca mais pude ir levar-lhe o almoço ao quartel nem almoçar com ele, pois era um hábito de todas nós, mulheres de bombeiros, fazermos isso.  Eu tinha de me levantar de madrugada para fazer o almoço e mandar-lho quando ele saía, por volta das sete horas, para que o aquecesse lá. As manas não autorizavam, e o homem das sapatilhas rotas nada podia fazer, elas é que mandavam, pois ele era um pelintra que casou com uma ricalhaça e tinha de calar o bico!
Um dia, foram a Fátima, elas eram muito beatas. Quando regressaram, tocaram para mim, às  duas da manhã.  Depois de saber que eram elas, abri a porta e fui saber se precisavam de alguma coisa. Resposta: «Não, tocámos para saber se estava em casa ou se aproveitou a nossa ausência para abandonar o prédio  e ir à sua terra...
Bom! Mas tudo isto, para dizer que eu tinha uma "regalia" extra: Sempre que  era transmitida tourada pela televisão,  eu era convidada a ir lá para casa assistir!
E eu ia! E eu entusiasmava-me com  aquela música... e os olés... Eu queria lá saber dos bichinhos para alguma coisa!  Eu não tinha capacidade para me aperceber do sofrimento dos pobres animais... Aquela música entusiasmava-me! Ainda não tinha chegado a minha hora de despertar, ainda não me tinha sido retirado o véu da ignorância... Eu vibrava com aquela música... Eu chorei, a escutar  os lamentos e os ais de uma visita das tais manas, toda vestida de negro, pois considerou-se viúva, quando um touro se defendeu e espetou o seu namorado, toureiro, nos chifres...
É por isso que tento compreender meus familiares e amigos. Não que eles apreciem touradas, não se trata disso, mas da alimentação cárnea. Como pessoa humanas, eu não encontraria melhores, amam-me, fazem tudo por mim, sofrem nestas alturas de convívio, tanto quanto eu,  que os amo, mas eu... DESPERTEI!
Parte deles, esforçam-se,  mas ainda não despertaram... O véu deles ainda não caiu.
Por favor, meus amigos, tenham compaixão dos nossos irmãos, pois quanto mais ódio e pragas lhes atirarmos para cima, mais toldados pelo  véu da ignorância eles ficam.
Florinda Rosa Isabel










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